Ilustrações: Carla Irusta
Editora: Rocco Pequenos Leitores
Acabamento: capa dura
Cor do miolo: colorido
Formato: 25 x 25 cm
Páginas: 48
Edição: 1ª
Ano: 2014
Idioma: Português
Classificação: não disponível
Categorias: literatura, infantil
Num momento em que a política é debatida nas redes sociais e nas ruas, gerando comportamentos por vezes extremos, a editora Rocco presenteia seus pequenos leitores com a reedição de Quase de Verdade, de Clarice Lispector. Lançado postumamente, em 1978, o livro tem como protagonista a força da fantasia e do pensamento na transfiguração da “realidade”. Ao lado de Água viva (1973), A hora da estrela (1977) e Um sopro de vida (1978), obras destinadas ao público adulto, o infantojuvenil se caracteriza pela radicalização do mergulho na linguagem e do questionamento de conceitos como realidade/fantasia, verdade/mentira, normalidade/mágica.
“Pois não é que vou latir uma história que até parece de mentira e até parece de verdade?”, diz o narrador, Ulisses, que assegura: “sou um cachorro quase normal. Ah, esqueci de dizer que sou um cachorro mágico: adivinho tudo pelo cheiro: Isto se chama ter faro.”
Nesta obra, marcada pelo traço autobiográfico, a história que Ulisses “late” para sua dona, Clarice, é apenas o ponto de partida para o mergulho num mundo fantástico. Com vontade de “ganhar muito dinheiro”, uma figueira invejosa “que não dá figos” traça um plano para obrigar galinhas a colocarem ovos continuamente. Ajudada por uma bruxa, a árvore consegue ficar acesa todas as noites, como se o sol batesse nas suas folhas. As galinhas, “pensando que era sempre dia”, passam a produzir ovos sem descanso. No entanto, as aves decidem se rebelar e “exigir seus direitos”. Estrategicamente, se posicionam no alto dos galhos da figueira “ditatorial”, a fim de que os ovos se quebrem ao caírem no chão. Por fim, o plano se frustra, o feitiço acaba e a paz retorna ao galinheiro.
Numa trama com toques de metalinguagem – história dentro da história – a autora faz alusões ao contexto social e político da época de forma lúdica e bem-humorada. Neste sentido, a trama atua como alegoria: a figueira representa o comportamento autoritário, num sistema que cria uma falsa experiência da vida e do tempo (dia/noite), exigindo produtividade constante.
Quase de verdade é também uma homenagem da escritora ao seu cachorro vira-lata, adquirido em 1974. Um cão de pelo castanho cor de guaraná e olhar de gente. Ulisses, que também deu nome ao personagem filósofo de Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, era para a escritora uma espécie de ponto convergente de afetividade em estado puro.
Na história “latida” pelo cão para sua dona, a busca por uma linguagem mais próxima do sensorial, acentuada nas últimas obras da escritora, se materializa na profusão de onomatopeias. “Está ouvindo agora mesmo um passarinho cantando? Se não está, faz de conta que está. Para ajudar você a inventar a sua pequena cantiga, vou lhe dizer como ele canta. Canta assim: pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim.”
A cada palavra, a autora procura imprimir o estado de “estar sendo”, que apreciava observar nas crianças e nos animais: “Assim corria a vida. Mansa, mansa. Os homens homenzavam, as mulheres mulherizavam, os meninos e as meninas meninizavam, os ventos ventavam, a chuva chuvava, as galinhas galinhavam, os galos galavam, a figueira figueirava, os ovos ovavam. E assim por diante.”A história, sempre em processo, segue ao correr dos instantes, interrompidos pela voz do narrador: “A essa altura, você deve estar reclamando e perguntando: cadê a história? Paciência, a história vai historijar.”
Interessante observar o duplo sentido das palavras e as intertextualidades. Tanto o nome do narrador quanto dos demais personagens da história remetem ao romance de James Joyce (Ulysses), que por sua vez podemos reportar à Odisseia, de Homero. O galo Ovídio, a galinha Odisséia e a figueira vivem no quintal de Oníria – uma senhora cujo nome faz referência ao mundo de sonhos, onírico. Em todos os nomes, reverbera também outra referência, à palavra ovo, bastante presente na literatura clariceana.
>A ilustração de Carla Irusta, verdadeira pintura, sublinha o convite à fantasia feito pela escritora. Simplicidade e profundidade fazem a tessitura desta escrita, em que a aparente “normalidade” (verdade, realidade) é questionada pelo poder de criar, fantasiar e transcender. Mesmo em situações aparentemente banais, nota-se a fina ironia da autora. Como no momento em que as galinhas já “livres e felizes” decidem comer jabuticabas. O caroço é doce, mas depois “fica um pouco azedo”. O livro se encerra com a seguinte pergunta, de inspiração filosófica: “Até logo, criança! Engole-se ou não se engole o caroço? Eis a questão.”
Com os pequenos leitores, Clarice deixa a pergunta, porta de entrada para o reino da realidade que é também fantasia.
Julia Duque Estrada (jornalista e mestre em Literatura Brasileira)