Editora: Todavia
Acabamento: capa cartonada com orelhas
Cor do miolo: preto
Formato: 13,5 × 20,8 cm
Páginas: 256
Edição: 1ª
Ano: 2021
Idioma: Português
Classificação: não disponível
Categorias: não ficção
Antilhana, Françoise Ega trabalhava em casas de família em Marselha, na França. Um de seus pequenos prazeres era ler a revista Paris Match, na qual deparou com um texto sobre Carolina Maria de Jesus e seu QUARTO DE DESPEJO. Identificou-se prontamente. E passou a escrever “cartas” — jamais entregues — à autora brasileira. CARTAS A UMA NEGRA, publicado postumamente, é um dos documentos literários mais significativos e tocantes sobre a exploração feminina e o racismo no século 20.
A autora:
Nascida na Martinica, Françoise Ega (1920-1976) trabalhou como doméstica antes de se tornar escritora e uma importante ativista social em defesa dos imigrantes caribenhos na França. Lançou, em vida, LE TEMPS DES MADRAS: RÉCIT DE LA MARTINIQUE, em 1966, e teve mais dois livros publicados postumamente, este CARTAS A UMA NEGRA: NARRATIVA ANTILHANA, em 1978, e L’ALIZÉ NE SOUFLAIT PLUS (ANTAN ROBÈ), em 2000.
Trecho do livro:
Maio de 1962: Eu descobri você, Carolina, no ônibus. Levo vinte e cinco minutos para ir até meu emprego. Penso que não tem a menor serventia ficar se perdendo em devaneios no trajeto para o trabalho. Toda semana me dou o luxo de comprar a revista Paris Match; atualmente, ela fala muito dos negros. Foi assim que conheci a sublime sra. Houphouët com seu vestido de gala. Eu não iria lhe dedicar as minhas palavras, ela não teria compreendido. Mas você, Carolina, que procura tábuas para o seu barraco, você, com suas crianças aos berros, está mais perto de mim. Volto para casa esgotada. Acendo a luz, as crianças estudam, do jeito como se faz hoje em dia. Elas não têm muitos deveres de casa, seria cansativo demais, mas me contam o enredo, detalhe por detalhe, da última história em quadrinhos que foi lida na escola. Carolina, você nunca vai me ler; eu jamais terei o tempo de ler você, vivo correndo, como todas as donas de casa atoladas de serviço, leio livros condensados, tudo muda rápido demais ao meu redor. Para escrever alguma coisa, preciso esconder meu lápis, senão as crianças somem com ele e com meus cadernos. Há noites em que os encontro bem fininhos. Já o meu marido me acha ridícula por perder tempo escrevendo bobagens; por isso, esconde cuidadosamente a sua caneta. Como você conseguia segurar um lápis com a criançada à sua volta? Para os meus filhos, sumir com um lápis é normal, sempre tem o da mãe ao alcance. Somente uma coisa os faz parar: quando digo que temos em casa apenas o dinheiro do pão, eles evitam, por um breve período, perder seus materiais. É sempre a mesma coisa, não importa o que estejam fazendo. Só me resta esperar para ver quem aparecerá primeiro com os sapatos furados depois de jogar futebol. Meu marido diz: “O importante é o pão de cada dia, o resto a gente dá um jeito.” Acho, Carolina, que você conhece essas palavras. Na favela, você nunca foi capaz de pensar em nada além do pão de cada dia. Penso que é isso que me aproxima de você, Carolina Maria de Jesus. Eu também me chamo Marie, como você, e Marcelle, como Pagnol. Moro muito perto do povoado dele, nunca o li, mas o escutei no rádio com paixão. Também me chamo Françoise e, por fim, Vittalline, como ninguém mais. Não canso de me perguntar onde meus pais encontraram um nome desses. *** 20 de maio de 1962: Se um dia eu lhe enviar estas linhas, você vai querer saber o resto da minha história. Hoje à noite, digo a mim mesma: “De que adianta?”. Estou cansada. Quando você juntou as tábuas para o barraco, você não conhecia a expressão “de que adianta?”, isso me dá uma vontade danada de escrever meus pensamentos, preto no branco, enquanto as crianças dormem. Pego de novo a Bic! Para ganhar dez francos à tarde, fiz quatro quartos, limpei dois banheiros, dois armários, descasquei dois quilos de ervilha. Em casa, só como as enlatadas, não gosto de descascar, irrita a ponta dos dedos. Mas não estou zangada, estamos no final do mês e é dia das mães, com o dinheiro poderei fazer um bolo bem grande. O dia das mães é ainda uma festa dos meus filhos! Eles pegaram um dos meus cadernos, agora tenho que copiar de novo todas as folhas. Se você não tivesse se tornado minha inspiração, eu já teria atirado tudo para o alto dizendo: “De que adianta escrever?”. Fecho uma janela em meus pensamentos, outra se abre, e a vejo curvada, na favela, escrevendo no papel que tinha catado no lixo. Eu, que tenho a imensa felicidade de ter um caderno, um abajur e uma música bem baixinha que sai do rádio, acho que seria covardia largar tudo porque uma criança rasgou as folhas do caderno. Só me resta recomeçar. Timidamente, eu disse para quem estava ao meu redor: “Estou escrevendo um livro.” Riram de mim. Repeti o meu leitmotiv a compatriotas que me viam rabiscar quando nos encontrávamos, fosse no ônibus, fosse nos encontros dos grupos comunitários. Aos risos, me disseram: “Cuide das suas crias.” Houve quem, por pena, levasse a mão à testa. Comecei então a escrever às escondidas, o que cheguei a dizer a uma correspondente distante e vivida, num dia em que ainda queria deixar tudo de lado. Hoje de manhã, essa senhora admirável respondeu: “Será um belo livro. Apesar de eu não saber do que trata, desde já sei como a senhora vai escrevê-lo.” Ela não me conhece e confia no meu potencial. É a oportunidade que tenho de avaliar o que posso esboçar, e isso me deixa animada. De uma só vez, escrevi três capítulos do Reino desvanecido, título que surgiu porque alguém tinha confiado em mim, por meio de algumas palavras.
O que estão falando sobre o livro:
“Ao incluir Carolina Maria de Jesus em sua escrita [...] como presença viva, Françoise Ega dá solidez ao seu texto e ao de sua ‘irmã brasileira’. ”
Regina Dalcastagnè, Suplemento Pernambuco